O que é a cultura hacker?
Nos filmes e séries, os hackers costumam ser retratados como figuras misteriosas: usam moletom preto, fones de ouvido e estão sempre diante de um notebook antigo exibindo linhas de comando em letras verdes. Geralmente, são personagens antissociais que invadem bancos ou sistemas empresariais, ou ainda anti-heróis que buscam fazer justiça com as próprias mãos, ou, melhor dizendo, com o próprio notebook. Na realidade, porém, a cultura hacker tem origens muito mais nobres do que as produções cinematográficas costumam mostrar.
A cultura hacker surgiu nos anos 1960, com os primeiros programadores do MIT que utilizavam a PDP-1, primeiros computadores da história a permitir interação em tempo real com o usuário, como ferramenta de experimentação. Esses “primeiros hackers”, originários do Tech Model Railroad Club, não buscavam invadir sistemas, mas sim explorar as potencialidades das máquinas e compartilhar soluções criativas. O termo “hacker” nasceu nesse ambiente, marcado pelo entusiasmo, colaboração e liberdade de criação. Com o surgimento da ARPANET, essa comunidade se expandiu, conectando-se em rede e estabelecendo uma ética própria, baseada no compartilhamento do conhecimento e no acesso livre à tecnologia.
Apesar disso, o senso comum ainda associa o termo “hacker” a crimes virtuais, como invasões, roubo de dados e prejuízos a sistemas. Para Valessio Brito, hacker e criador do Espaço Hacker ICAT, em Jacobina, essa visão distorcida lembra a imagem das “bruxas” na Antiguidade: mulheres com conhecimento sobre ervas e cura que ajudavam suas comunidades, mas foram perseguidas e demonizadas por religiões e por setores da indústria (medicina) que as viam como ameaça. O mesmo ocorreu com os hackers, estigmatizados como perigosos por desafiarem interesses estabelecidos.
Ele se define como um hacker ativista e defende princípios éticos: entre eles, o de nunca usar seus conhecimentos para tirar vantagem sobre outras pessoas. Essa conduta se encaixa no conceito de hacker ético, profissionais que utilizam suas habilidades para ajudar pessoas e empresas a identificarem e corrigirem falhas de segurança digital. Durante a conversa, Valessio também destacou a diversidade existente dentro da cultura hacker. Um exemplo é o biohacker: pessoa que atua na área da química e das biociências, com o objetivo de democratizar o acesso a equipamentos e conhecimentos como estetoscópios e instrumentos laboratoriais que, em geral, são inacessíveis para muitos.
Valessio, que também ajudou a fundar outros hackerspaces como o Calango, em Brasília, e outro em Salvador, compartilhou em entrevista sua perspectiva sobre o verdadeiro papel do hacker e a importância de espaços como o ICAT, voltados à formação, inovação e colaboração tecnológica.
Hacker x Cracker
Esse estereótipo do hacker como um “criminoso digital” acabou obscurecendo as origens construtivas e criativas da cultura hacker. A própria palavra passou a ser usada popularmente como sinônimo de “cracker”, termo mais apropriado para quem quebra sistemas de segurança com intenções maliciosas.
O termo “cracker” é bem conhecido no mundo dos jogos, especialmente no Brasil, onde o alto custo dos games incentiva a pirataria. Nesse contexto, é comum que jogos piratas para PC venham com um arquivo chamado “crack”, que permite desbloquear o conteúdo original do jogo.
Por conta desse estereótipo negativo, surgiu uma nova denominação para resgatar o verdadeiro significado do que era ser hacker antigamente: o hacker ético. Esse profissional é alguém com grande conhecimento técnico, que tenta invadir sistemas e serviços de empresas conhecidas com o objetivo de identificar falhas de segurança. Quando encontra uma brecha, ele a reporta para que possa ser corrigida.
Atualmente, muitas empresas mantêm programas de recompensa para quem descobrir e relatar vulnerabilidades. Assim, muitos hackers éticos ganham a vida identificando e reportando essas falhas, contribuindo para um ambiente digital mais seguro.
Benefícios e Malefícios
Benefícios
Inovação tecnológica
Hackers são movidos pela curiosidade e pelo desejo de melhorar sistemas. Muitas inovações e avanços tecnológicos vieram de pessoas que pensaram “fora da caixa”, como o desenvolvimento do software livre, sistemas operacionais como o Linux, navegadores, entre outros.
Aprimoramento da segurança digital
Hackers éticos (ou white hats) ajudam a encontrar e corrigir falhas de segurança antes que elas sejam exploradas. Grandes empresas contratam esses profissionais para testar seus sistemas e proteger dados sensíveis.
Valorização do conhecimento e da liberdade digital
A cultura hacker defende o acesso ao conhecimento, a colaboração e a transparência. Isso fortalece comunidades de aprendizado e projetos coletivos, como o movimento open source.
Promoção da educação autodidata
A mentalidade hacker incentiva o aprendizado contínuo, a experimentação e o ensino mútuo. Isso estimula muitas pessoas a aprenderem por conta própria sobre programação, redes e tecnologia.
Criação de soluções sociais e comunitárias
Muitos hackers aplicam seus conhecimentos para resolver problemas reais, como criar aplicativos para inclusão digital, melhorar a acessibilidade, ou facilitar o acesso à informação.
Malefícios
Atividades criminosas (quando desviada para fins maliciosos)
Hackers mal-intencionados (black hats) podem causar prejuízos sérios ao invadir sistemas, roubar dados, aplicar golpes e espalhar vírus ou ransomware.
Estereotipação negativa
O uso da palavra “hacker” como sinônimo de criminoso prejudica profissionais éticos e cria desinformação. Isso dificulta o reconhecimento do valor social e técnico da cultura hacker original.
Quebra de confiança digital
Invasões frequentes, mesmo que feitas por poucos, aumentam o medo em relação ao uso da internet, prejudicando a confiança de usuários, empresas e instituições.
Espionagem e manipulação de informações
Grupos hackers podem ser usados por governos ou organizações para espionagem digital, manipulação política (como em campanhas de desinformação) ou até ataques a infraestruturas críticas.
Dificuldade na distinção entre ética e ilegalidade
Em alguns casos, jovens ou iniciantes na cultura hacker podem não entender os limites entre exploração ética e invasão ilegal, o que pode levá-los a cometer crimes sem plena consciência.
Cenário Hacker em Jacobina
Criado por Valessio, o espaço ICAT em Jacobina, tem como objetivo estimular o interesse da população pela tecnologia, além de fazer um papel socioeducativo para os munícipes. Valessio ressaltou como o hackerspace pode contribuir para o desenvolvimento local da cidade, promovendo além de gosto pela tecnologia mas também um espírito empreendedor. Como exemplo prático, citou como pode ser feito um projeto de uma catraca de acesso com reconhecimento facial que desenvolvida pode ser vendidas para academias da cidade e região: “(…) essa catraca custaria bem menos do que as utilizadas atualmente, além de facilitar a entrega.”
Outro ponto importante destacado por Valessio é que o espaço é aberto ao público, de forma gratuita e sem restrições. É um ambiente acolhedor tanto para quem deseja aprender ou ensinar tecnologia, como também para curiosos ou iniciantes interessados em áreas como programação, robótica e eletrônica. O funcionamento do espaço é mantido por seus próprios membros, que contribuem com pequenas quantias financeiras e com tempo e disposição para participar de projetos coletivos.






Projetos como esse estimulam o interesse da população, além fortalecem o grupo hacker de Jacobina e ajudam a desconstruir o estereótipo de que todo hacker é um criminoso.
Na data da entrevista o espaço ainda não tinha sido inaugurado oficialmente e estava passando por processos de organização estrutural, na presente data da publicação o ICAT já se encontra em funcionamento oficialmente.
Conclusão
A figura do hacker, historicamente associada a crimes virtuais, precisa ser revista à luz da própria origem da cultura hacker. Desde os primeiros programadores do MIT, que usavam a PDP-1 para explorar criativamente as possibilidades da computação, até os ciberativistas contemporâneos que defendem o acesso livre ao conhecimento, os hackers têm desempenhado um papel essencial no avanço tecnológico e na democratização digital. Como apontam Raymond (2000) e Amadeu (2001), o hacker é, acima de tudo, um agente de inovação, colaboração e resistência ao controle corporativo e estatal sobre a informação. Ao longo do tempo, o estereótipo reducionista, que os pinta como criminosos encapuzados, obscureceu suas contribuições éticas e sociais. Desmistificar essa imagem é fundamental para reconhecer o valor desses sujeitos na construção de uma cultura digital mais aberta, crítica e participativa. A ética hacker, baseada no compartilhamento, na liberdade e na criatividade, oferece caminhos potentes para pensar a tecnologia como ferramenta de emancipação coletiva.
Referências
A profissão de hacker ético. Pod Clips, Youtube, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mZaec2lUn68. Acesso: 10 de junho de 2025.
WARD, Mark. Saiba mais sobre a história dos hackers. BBC Brasil, 2011. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/06/110623_historiahacking_is. Acesso: 23 de junho de 2025
RAYMOND, Eric S. Breve historia de la cultura hacker. Trad. Abel R. Micó. 2000. Disponível em: http://biblioweb.sindominio.net/telematica/historia-cultura-hacker.html. Acesso: 23 de junho de 2025.
AMADEU, Sergio. Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo colaborativo. Revista USP, São Paulo, n. 89, p. 106–113, mar./mai. 2011. Disponível em: https://revistas.usp.br/revusp/article/view/13811/15629. Acesso em: 26 jul. 2025.
Autores:
Guilherme Mendes Coutinho (guilermecoutinho980@gmail.com)
Jaqueline Santos Silva (jacque.sp124@gmail.com)
Harcker: Herói ou Vilão © 2025 por Guilherme Mendes Coutinho e Jaqueline Santos Silva está licenciado sob CC BY-NC-SA 4.0