*Por Edson Júnior Matos dos Anjos
O atual cenário de crise comercial provocado pelo presidente estadunidense Donald Trump trouxe à tona um importante debate já há muito presente na sociedade brasileira: o “Complexo de Vira-Lata”. Criado por Nelson Rodrigues após a traumática derrota brasileira na final da Copa do Mundo de 1950, e muito utilizado em recentes falas do presidente Lula, o conceito ultrapassou o universo esportivo para se tornar metáfora de um sentimento persistente de inferioridade cultural e social presente em diferentes setores do país.
Trata-se de uma síndrome nacional — uma espécie de psicologia coletiva internalizada — que alimenta o desprezo pelo que é brasileiro e a admiração acrítica por modelos estrangeiros, sobretudo eurocêntricos e estadunidenses. O complexo, longe de ser apenas um sentimento isolado, tem raízes profundas no imaginário de uma elite forjada sob os escombros do colonialismo, que construiu sua autoimagem a partir da rejeição à própria cultura e do culto ao “lá fora”.
A base histórica desse complexo remonta ao pensamento de autores como Nina Rodrigues, Monteiro Lobato e Oliveira Viana, que, no início do século XX, sustentaram teses eugenistas e deterministas, associando a miscigenação e a herança africana e indígena à suposta “inferioridade” do povo brasileiro. Essa mentalidade colonizada, elitista e racista impregnou boa parte das instituições e da formação das classes médias urbanas. Em contrapartida, vozes como Gilberto Freyre e Ariano Suassuna combateram essa narrativa, valorizando a mestiçagem como traço distintivo e potência criativa do Brasil. Suassuna, em especial, ironizava o comportamento do brasileiro que “não acredita no próprio país”, chamando isso de “mística da derrota”, ao passo que propunha um “realismo esperançoso” como antídoto ao pessimismo colonizado.
O “Complexo de Vira-Lata” não é um fenômeno isolado. Ele se conecta historicamente a processos como o imperialismo cultural, que reforça a dependência simbólica; ao colonialismo mental herdado da colonização portuguesa; e à lógica econômica de dependência teorizada por pensadores da CEPAL, como Raúl Prebisch, que apontavam a subordinação estrutural dos países periféricos aos centros econômicos globais. Também guarda relação com o que Frantz Fanon descreveu como “alienação cultural” nas ex-colônias, em que o colonizado internaliza o olhar depreciativo do colonizador e passa a reproduzi-lo.
Exemplos dessa postura surgem de forma recorrente: a crítica sistemática à realização da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016; a rejeição de parte da população às universidades públicas de excelência; a importação de discursos políticos estrangeiros, como o “trumpismo”, sem adaptação ao contexto nacional. Darcy Ribeiro já alertava para a dimensão política desse processo ao afirmar que “a crise da educação não é uma crise, é um projeto”, denunciando a manutenção deliberada da ignorância e da subalternidade cultural como ferramentas de dominação.
Esse comportamento tem consequências graves: fragiliza a autoestima nacional, dificulta a formulação de projetos autônomos de desenvolvimento, enfraquece a soberania cultural e perpetua a lógica de dependência. Um país que não acredita em si mesmo dificilmente terá forças para enfrentar as pressões externas e internas que moldam seu destino.
Em diálogo com alunos e até alguns colegas cientistas sociais, sempre ressalto a importância de rompermos esse ciclo histórico. Entendo que superar esse complexo exige mais do que discursos otimistas — requer um esforço coletivo e consciente. É necessário valorizar a cultura nacional sem isolacionismo, investir em educação crítica e emancipatória, e reconstruir o orgulho de ser brasileiro sem cair em autocomplacência. O Brasil não carece de talento, inteligência ou capacidade — carece de confiança em si mesmo e de coragem para romper com a mentalidade colonizada que ainda persiste.
O convite que se impõe é este: olhar para o Brasil sem a lente distorcida do preconceito herdado, reconhecer nossas virtudes e desafios de forma realista e decidir, de maneira consciente, que não aceitaremos mais ser coadjuvantes da nossa própria história. É hora de abandonar a coleira do vira-lata e assumir o papel de protagonista no próprio destino.
Box de Referência – Autores e Conceitos-Chave
Nelson Rodrigues – Jornalista e dramaturgo que cunhou o termo “Complexo de Vira-Lata” após a derrota do Brasil na Copa de 1950.
Darcy Ribeiro – Antropólogo e educador que denunciou a “crise da educação” como projeto deliberado de manutenção da desigualdade e subalternidade.
Gilberto Freyre – Sociólogo que valorizou a mestiçagem como elemento distintivo e fonte de riqueza cultural brasileira.
Ariano Suassuna – Escritor e dramaturgo que criticava o pessimismo colonizado e defendia o “realismo esperançoso”.
Frantz Fanon – Intelectual martinicano que analisou a alienação cultural e a internalização do racismo nos povos colonizados.
Imperialismo Cultural – Domínio simbólico e cultural de uma nação sobre outra, reforçando a dependência e a perda de referências próprias.
Colonialismo Mental – Permanência de padrões culturais e visões de mundo impostos pelo colonizador, mesmo após a independência política.
Teoria da Dependência (CEPAL) – Conjunto de estudos que explica a subordinação econômica dos países periféricos aos países centrais.
*PROFESSOR EDSON JÚNIOR MATOS DOS ANJOS:
HISTORIADOR FORMADO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DA BAHIA
PÓS GRADUADO EM TURISMO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
PÓS GRADUADO EM MBA EM GESTÃO DE RECURSO HUMANOS
PÓS GRADUANDO EM HISTÓRIA DO BRASIL
PROFESSOR DO COLÉGIO ESTADUAL PROFESSORA ADJACI MARTINS DURANS – Várzea Nova – Ba.
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