
Por João Batista Ferreira
No meio do século XVIII, quando Jacobina ainda engatinhava como vila recém-criada nos sertões baianos, um episódio dramático colocaria o nome do município diante do mais temido tribunal de sua época: o Santo Ofício da Inquisição. Em 1745, quatro negros — três escravos e um forro — foram arrancados de suas rotinas e transportados, décadas antes da independência do Brasil, para enfrentar a justiça religiosa de Lisboa. O motivo? Carregavam as chamadas bolsas de mandinga, pequenos amuletos sincréticos, usados para proteção e coragem, comuns entre africanos e seus descendentes, mas vistos pelos inquisidores como provas de pacto com o demônio
A denúncia partiu do próprio vigário da freguesia de Santo Antônio de Jacobina, padre João Mendes, que ouvira rumores de que alguns negros carregavam patuás contendo orações, talismãs e até hóstias consagradas. Naquele mundo densamente religioso e profundamente desconfiado da cultura africana, qualquer mistura de símbolos católicos com práticas de origem angolana, congo ou mina era tratada como ameaça à ordem cristã. Assim começou o sumário de culpas que envolveria José Martins, negro forro; os escravos Mateus Pereira Machado e Luiz Pereira de Almeida; e João da Silva, o “Curto”, africano de Luanda. Todos seriam acusados de sacrilegio, feitiçaria e superstição — crimes graves no olhar do Santo Ofício
Jacobina, então sede de uma vasta comarca que cobria o norte da Bahia, vivia em relativa calma, marcada por rios, pequenas ruas de pedra e fazendas dispersas em um sertão ainda indomado. Mas por trás do cotidiano pacato, o medo do “sobrenatural” definia comportamentos. Vaqueiros, tropeiros e escravos costumavam levar amuletos como forma de proteção nas longas travessias e conflitos com indígenas remanescentes. Para José Martins, por exemplo, a bolsa de mandinga era lembrança do pai, que acreditava que ela o tornara valente e o protegera de ferimentos. Em Jacobina, esse sincretismo não era exceção: era sobrevivência. Mas para a Inquisição, era evidência de heresia
Presos, interrogados e perseguidos, os quatro homens experimentaram uma jornada que os conduziria de Jacobina à cadeia de Salvador, depois ao porão de um navio e, finalmente, às celas geladas do Tribunal do Santo Ofício em Lisboa. Ali, foram separados para impedir qualquer troca de palavras e enfrentaram audiências exaustivas. Em meio aos depoimentos, buscavam explicar que os amuletos nada tinham de demoníaco — eram apenas rezas, “pedras bentas” e pequenos objetos de proteção. Nada disso, porém, impediu que fossem acusados de pacto com o demônio. Em 1756, submetidos a torturas como o “potro”, tiveram seus corpos esmagados por correias de couro apertadas com torniquetes, numa tentativa de fazê-los confessar culpas inexistentes às autoridades religiosas
Como se não bastassem as humilhações, os jacobinenses viveram ainda um dos eventos mais terríveis da história europeia: o grande terremoto de Lisboa, em 1º de novembro de 1755. Do fundo das celas, ouviram desmoronar a capital portuguesa, assistindo à fuga de guardas e à destruição de parte dos cárceres do Santo Ofício. Por um breve instante, a liberdade pareceu possível. Ainda assim, disciplinados ou temerosos, apresentaram-se voluntariamente ao alcaide, assinando um termo de que não fugiriam. Esse gesto de obediência foi pago com mais torturas e sentenças públicas no Auto de Fé de Évora, onde foram expostos diante de multidões e condenados ao degredo em regiões distantes de Portugal. Para os escravos, ao menos, restou um consolo tardio: em 1761, um decreto português libertaria todos os escravos residentes no Reino
O destino final daqueles quatro homens de Jacobina se perde nos arquivos. Não sabemos se encontraram paz, liberdade ou apenas mais sofrimento. Mas suas histórias, registradas nos volumosos processos da Torre do Tombo, revelam a violência simbólica e física que marcava a vida de negros no Brasil colonial. Mostram também que mesmo no interior profundo da Bahia, longe dos centros administrativos da colônia, a Inquisição estendia sua sombra sobre práticas culturais africanas que garantiam identidade, proteção e sentido à vida. Que este resgate histórico sirva como memória e homenagem às vítimas jacobinenses de um dos capítulos mais sombrios da nossa história.
Para a elaboração deste artigo, utilizei como principal referência o estudo “Quatro mandigueiros do sertão de Jacobina nas garras da Inquisição”, pesquisa conduzida pelo antropólogo e historiador Luiz Mott.
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