
Por João Batista Ferreira
Na semana passada, durante a Semana da Consciência Negra, publicamos o artigo “Como quatro negros de Jacobina viraram alvo da Inquisição” (acesse aqui o link: https://www.jacobina24horas.com.br/como-quatro-negros-de-jacobina-viraram-alvo-da-inquisicao/
).
A repercussão foi imediata. Muitos leitores quiseram saber mais: quem eram, afinal, aqueles quatro homens arrancados do sertão baiano e lançados diante dos juízes de Lisboa? Como viviam? O que disseram? O que sofreram? Para responder a essas perguntas, iniciamos esta série especial dedicada a cada um deles. E começamos pelo personagem cuja trajetória mais impressiona: o forro José Martins, protagonista de um percurso que atravessa as serras de Jacobina, desce ao porto de Salvador, cruza o Oceano Atlântico e termina nos corredores sombrios do Santo Ofício.
No meio do século XVIII, Jacobina já não era apenas um posto avançado cravado entre serras e rios. Com seu pequeno casario de pedra, fazendas de gado espalhadas e um movimento constante de tropeiros, constituía um ponto de passagem entre o litoral baiano e o interior profundo. Era uma terra de contrastes: ao mesmo tempo marcada por tradições católicas rígidas e permeada por costumes africanos trazidos por escravos e libertos. Nesse ambiente híbrido, onde o sagrado e o cotidiano se misturavam, surgiam práticas como as bolsas de mandinga — patuás que combinavam orações, pedras e pequenos objetos usados como proteção pelos viajantes dos sertões.
Foi nesse cenário que apareceu a figura de José Martins, preto forro de 25 anos, casado com a parda Luiza e morador do Riachão da Jacobina. Filho de pais libertos, cresceu ouvindo histórias sobre amuletos que afastavam facadas, flechadas e emboscadas de caminho. Ao ser interrogado, afirmou que um escravo, Luiz, lhe pedira que guardasse uma bolsinha de couro, revelando dias depois que dentro havia uma hóstia consagrada entregue por outro cativo, Mateus. Mas documentos posteriores mostrariam que José conhecia o patuá bem antes disso — fora um presente de seu próprio pai, usado “nas valentias da mocidade”.
A denúncia do vigário João Mendes abriu um sumário de culpas que rapidamente envolveu José e mais três homens. Rumores diziam que, numa noite de São João, José e um primo teriam sido vistos numa estrada afastada fazendo mandingas e até renegando Deus e Nossa Senhora. Outros moradores garantiam que não se tratava de pacto maligno, mas apenas de “orações fortes” para afastar doenças e perigos. Mesmo assim, o grupo foi preso e levado à cadeia da vila. Conseguiu fugir, viveu meses como foragido e, por fim, foi capturado por ordem direta da Inquisição portuguesa, que exigia que fossem enviados a Lisboa.
Em janeiro de 1752, José Martins desembarcou nos cárceres secretos do Santo Ofício. Ali, cada réu era isolado para impedir qualquer troca de palavras. Em seu exame de doutrina, José falhou em recitar os mandamentos, tornando-se automaticamente suspeito aos olhos dos inquisidores. Ao ser questionado sobre visões demoníacas, relatou que durante a viagem marítima teria visto um ser estranho: “mestiço, muito cabeludo, gordo da cintura para cima e delgado da cintura para baixo”, que apenas sorriu antes de desaparecer. Em seu segundo depoimento, em 1755, declarou acreditar que quem portasse o patuá “não podia ser ferido por virtude do demônio”.
O martírio físico aconteceria logo depois. Em 31 de maio de 1756, José foi submetido ao potro, tortura em que braços e pernas eram amarrados a oito correias apertadas com torniquetes. Durante quinze minutos de dor extrema, invocou a Virgem da Conceição. Em seguida, recebeu açoites públicos e foi levado ao Auto de Fé de Évora, em 20 de junho do mesmo ano, onde recebeu sua sentença final: quatro anos de degredo em Miranda do Douro, no norte de Portugal.
Depois disso, José Martins desaparece dos registros. Não sabemos se sobreviveu ao exílio, nem se um dia tentou voltar ao Brasil. O que permanece é sua trajetória: a de um homem livre do sertão baiano que, por carregar um patuá herdado do pai, acabou arrastado até o tribunal mais temido de seu tempo. Um percurso que revela o alcance da Inquisição e a violência que recaía sobre práticas africanas de proteção, transformadas em crimes num mundo colonial marcado por medo, intolerância e poder religioso.
Para a elaboração deste artigo, utilizei como principal referência o estudo “Quatro mandigueiros do sertão de Jacobina nas garras da Inquisição”, pesquisa conduzida pelo antropólogo e historiador Luiz Mott.
O conteúdo O suplício de José Martins: de Jacobina aos porões da Inquisição portuguesa aparece primeiro em .