Atuar no serviço público de saúde nunca foi fácil. Antes do SUS vivemos no modelo ambulatorial e hospitalocêntrico, de hegemonia médica, praticamente sem ações de prevenção e promoção da saúde e com acesso muito difícil para o cidadão comum. A única coisa que se conhecia era a vacinação e hospitais superlotados, sem equipe completa em cada plantão, onde os serviços filantrópicos, as santas casas, os prontos-socorros e os hospitais universitários eram os mais procurados por uma multidão de desesperados.
Com o surgimento do SUS o acesso foi ampliado, desde os territórios, com as equipes de saúde da família, onde o cidadão pode ser acompanhado por um agente comunitário de saúde e ter uma equipe multidisciplinar que realiza ações de prevenção, promoção e intervenção, dentro dos protocolos da atenção básica, com fluxo para os setores secundários e terciários de atenção.
O cidadão, por sua vez, pode participar do controle social, num conselho local de saúde ou nas reuniões do conselho municipal de saúde, sendo ouvido e participando das decisões sobre as práticas e oferta de serviços de saúde, com possibilidade de propor ações durante as conferências de saúde.
Mas, por que existe tanta queixa de usuários sobre os serviços de saúde? Por que existem tantas queixas dos profissionais de saúde sobre a população que não seguem os protocolos e fluxos, ainda buscando furar filas, burlar o sistema, usar a lei do Gerson?
Nosso nível civilizatório ainda não tem maturidade para conviver com um serviço universal, integral e equitativo como propõe o SUS. A universalidade propõe acesso de todos a todos os níveis de atenção, mas, logicamente, dentro de um fluxo que deve ser iniciado na atenção básica, observando classificação de risco para a ordem de atendimento.
A integralidade é o princípio que garante um acompanhamento contínuo e integrado, abrangendo todas as ações necessárias para a saúde do cidadão, também sendo observados os protocolos e fluxos de cada oferta de serviço.
A equidade visa tratar cada cidadão de acordo com suas necessidades específicas para garantir que todos tenham acesso justo e igualitário aos serviços de saúde, reduzindo desigualdades sociais: dar mais para quem tem menos.
Infelizmente a maioria da população e dos profissionais de saúde não atua assim por motivos citados acima. Poucos trabalharam para implantar o SUS e muitos querem apenas os benefícios da oferta de serviços e de empregos.
Do lado do cidadão comum, ainda acostumado com o modelo hegemônico e hospitalocêntrico, todas as demandas viram urgência, mesmo uma gripe, quando se procura uma unidade de urgência (UPA) ou uma UBS exigindo atendimento médico antes de passar por classificação de risco, sem pensar em quem mais pode estar precisando.
Do lado dos profissionais de saúde a queixa maior é sobre o vínculo trabalhista precário, sem garantias trabalhistas, quando poucos são efetivos, profissionais de carreira, além da sobrecarga de trabalho e dos riscos que enfrentam diante de usuários que buscam direitos onde existem protocolos desconhecidos pela maioria.
No interior essa cena ganha o estímulo da busca do privilégio por conhecimento pessoal ou por pressão de ameaças. A famosa pergunta “sabe com quem está falando”, usada em todo o país, é citada por muito mais gente no interior, onde quase todos se conhecem ao menos de vista.
Tive a oportunidade de atuar na Conferência Municipal de Saúde em 2003, quando solicitamos e conseguimos a implantação do Programa de Saúde da Família. Atuo na ponta do sistema desde 1993, conhecendo todos os territórios de Jacobina desde então, com o trailer odontológico. Já fui conselheiro de saúde, representando usuários, trabalhadores de saúde e gestão. Participei da implantação de diversos serviços, não apenas dos três Caps locais. Estou há muito tempo nos dois lados da trincheira, por escolha, não apenas para bater carimbo.
Não há vencedores nem vencidos nesse tipo de relação. A grande maioria dos usuários que buscam atendimento relâmpago não dará continuidade à integralidade do cuidado. Não aceitam iniciar ou retornar para a atenção básica quando o diagnóstico ou projeto terapêutico singular é estruturado num nível superior de complexidade, que não deve ter pacientes eternos, como os CAPS, os serviços de cardiologia, de neurologia, de fisioterapia, pediatria e etc.
A atenção básica tem equipe capaz de reconhecer e tratar demandas além das doenças físicas que podem ser compartilhadas aos serviços especializados em situações específicas. E para lá o usuário deverá retornar para ter o devido acompanhamento do seu projeto terapêutico singular, desenhado por um serviço especializado, mas aplicado com as especificidades de cada território.
Quando se pula etapa, no máximo se recebe uma receita e medicação, mas não o acompanhamento devido, sem garantia de uso adequado, regular, com autonomia de cuidado, que só a atenção básica é capaz de oferecer.
Cledson Sady
Membro da Academia Jacobinense de Letras
Diretor de Saúde Mental